-Vai, me dá logo um tiro, seu covarde, seu filho da puta. Não vou dizer que não foi doído, me deu até dó. Ai. Me foi difícil matar uma mulher como a Elvira, mesmo ela sendo uma besta, uma víbora pestilenta, escrava das trevas, mesmo ela sendo uma serviçal maldita. Sabe como é a cena – o leitor cuja inocência foi vertida na sangria -, aquela dignidade mítica de quem vai morrer, ou melhor – de quem oferece a cabeça em sacrifício, de quem quer ser santo na hecatombe ridícula do dia-a-dia: mas não se engane, é tudo muito falso. A honra do homem, ah, que não se pode medi-la, mesmo com laivos de autêntica se espalha num esparramar de miolos como uma mentira, muito frágil, muito patética, na sonolência silenciosa da minha casa vazia. Foi assim com Elvira – me chamou de cachorro, a cachorra. Disse que lhe valia muito mais morrer agora do que receber minha carícia, etc. Coisa de quem duvida. Farejo a conversa-fiada, identifico a ousadia. A Elvira, coitada, mais um segundo do coração desfalecia. Não lhe permiti a honra.
Não me agradou a idéia de limpar a sala, enxugar aquele sangue todo, os caquinhos de crânio (o cabelo dela esvoaçando eriçado que nem um porco-espinho, que nem uma água-viva), entre outros elementos absolutamente lastimáveis do corpo humano que desnudos assim me repugnavam de tal monta que só me restou fugir.
-O homem reto evita o que lhe afronta a higiene, simplesmente-
O bojo do meu amor se deglutindo, o peso do peito que fora tão arfante da Elvira aquecendo as estrias do piso e a fumaça do revólver nas golfadas infernais, mas e a fumaça do cigarro agora defronte esse chiqueiro na – a edição, única medida cuidadosa na vida, os incautos se entregam no contar- ,minhas pernas esticadas, depois cruzadas, olhando suando nunca sonhando, um filho apagado de Deus. Pode me ler, sou outro homem.
Primeiramente, as circunstâncias,
Quando eu conheci a Elvira, soube logo que seria a mulher da minha vida. Último ano do colegial, apresentados por intermédio de uma amiga, toda essa ladainha. Falávamos de poesia, Pessoa, de lugares distantes, da magia de terras desconhecidas. E como tudo que começa com versos e lírios do campo termina em sacanagem e ofegantes blandícias, amamo-nos assim incomensuravelmente. – O leitor sabe, indivíduos cuja abordagem primeira recai imediatamente no interesse indefinível pela poesia, têm tão somente um objetivo: foder, invariavelmente. Há tipos e tipos, os suaves e/ou lúgubres, dos sonetos regados a vinho e delírio, que ainda te querem foder a cabeça; os acadêmicos lunáticos (fugir sobretudo destes)-
O pai dela era um lixo, a mãe um trambolho. Certa vez, o velho, O sempre bêbado, um peso aposentado, cego de um olho e carente de neurônios, tentou ferir-me com um magnífico instrumento conhecido como atiçador, ao pensar que eu, noivo de sua cândida Elvira, era o leiteiro (o que comera sua esposa).
Porém éramos felizes.
Só que há duas coisas nessa vida que eu não tolero, veja bem. Enumero-as:
1) Molestar criança, que é uma crueldade descabida e atroz, cometida por loucos, torpes, homens sem elegância, porcos de toda espécie
2) Resumindo, a outra é que me toquem o carro.
Para os que sabem do que falo, há em minha casa uma coisa chamada enciclopédia. Bem, procure uma explanação satisfatória concernente a eles, os automóveis. Carroceria, suspensão, frenagem, direção,… aos enciclopedistas, esses eunucos da paixão, falta a sensibilidade para destacar o essencial. Vejamos: só há um único espaço reservado ao condutor, e este deve ser o proprietário no caso Eu.
Esse foi o erro de Elvira, tocar a porra do carro; – que audácia- ligá-lo, andar nele.
Não vou mentir, não vou dizer que não foi doído. Nunca deve ser fácil matar uma mulher como a Elvira; ela era bonita. Ela tinha uns olhinhos duros por dentro que nem ameixas, doces, secos e escuros; o peito que sempre tamborilava cansado porque ela era triste, bonita e triste; cabelos de fundo de mar. – O nosso herói, não por graça de estilo, mas por inocência intuitiva, mantém breve o elogio à amada. Ele sabe, as coisas dignamente belas cabem no bico do beija-flor. She turned away,/ but with the autumn weather/ Compelled my imagination many days,/ Many days and many hours, I bring you with reverent hands/ The books of my numberless dreams. Nada de complicações. Um olhar mais crítico ensina: pode ser belo, trabalhado, vá lá, mas é tudo mentira, todavia passível de análise, disseco que nem sapo. Um olhar mais coerente elucida: é tudo balela. Só zero-à-esqueda que quer ser poeta – Francamente, uma puta morfética,
Pra quê me privar do pudor, da minha juventude maturidade e velhice, da minha infância da minha razão? Pra quê me tocar o carro? Pra quê me maltratar assim a alma?
Que nem um verme ela buscava faminta o meu tesouro.
Fugi, troquei de identidade etc.
Ha, dia desses (ainda me procuram), liguei a TV. Um homem, um cavaleiro da luz, absolutamente sobrenatural, grandalhão, imponente, bradava, largo que nem Deus (creio que o era), algo ao meu respeito. Atordoado com a corpulência divina, seu porta-voz, menos profético é verdade mas com aquele ar messiânico, um senhorzinho respeitável, foi o responsável pelo meu entendimento. Ele disse vejam bem é um marginal um assassino não vale o que o gato enterrou crápula covarde como é possível ainda foragido. Daí uma foto antiga, eu menos severo, ou eu mais vivo. Demorei pra me reconhecer. O rosto era até familiar mas como a gente muda sem barba.
–
E então mais uma vez adormeço, sem culpa. Querem que eu sinta culpa, mas no desnovelo da aurora eu sinto meus músculos vibrarem em êxtase (não digo alegria). O amanhecer é sempre certo, o sol se espreguiça, se impõe tirânico e cancerígeno, uma brasa intermitente no pisca-pisca eterno da rotina, esse nascer do sol que é um vai-tomar-no-cu¹ certeiro e interminável.
–
La rue assourdissante autour de moi hurlait
Saindo com meu carro vejo como é tudo muito vulgar, repetitivo e barulhento, essa coisa da criação. Não me agrada tanta inutilidade caótica. É canto de pássaros, é andar rutilante da natureza, é ventre estéril e infinito do mar que me espanta. Pra quê? O dedo do criador, a cabeça do artesão – canalhices sem fim. Você vê respira ou lê: e é um enfado, esses bafos do falsário. Enquanto dirijo vejo como a vida é cafona; viver é horrendo. Mas olha esse par de pernas.
¹ O dicionário Aurélio registra o vocábulo sem acento
Detran, Detran, tôdiolhonosinhô.